Eu poderia começar esse artigo com alguma frase de Sun Tzu em A Arte da Guerra falando sobre a importância de conhecer o inimigo. Mas a internet já anda muito cheia de frases prontas fora de contexto que tentam simplificar situações complexas. E quando falamos de estratégias de mercado, essa complexidade é cada vez mais evidente.
Com o avanço da digitalização nas cadeias de valor, é raro pensarmos em mercados que passem ilesos pela convergência tecnológica. Até mesmo a vendinha da esquina, que antes concorria apenas com a padaria, agora compete com plataformas digitais que podem entregar um quilo de açúcar em poucos minutos e não deixar a massa do bolo solar. Mas a dúvida é pertinente, principalmente para pequenos e médios negócios que atuam em mercados mais pulverizados. São muitos players dividindo migalhas de um enorme bolo. Há pouco tempo para agir, e muita informação para ver. Será que vale a pena olhar para a concorrência?
Sim, vale. Vou explicar por quê.
Segmento industrial ou necessidade?
Tendemos a olhar para os mercados como segmentos industriais: mercado automotivo, mercado de restaurantes, mercado imobiliário. Quando estamos inseridos em um segmento já existente, nossa tendência é olhar para o lado na busca pelos players mais relevantes e sonhar em alcançá-los. Se não cometermos o erro de tentar copiar a estratégia deles, podemos até ser bem-sucedidos em nossas ambições mais ousadas. Isso irá depender de uma boa definição de onde jogar e como vencer, com determinadas capacidades e sistemas de gestão apropriados.
Mas podemos enxergar esses mercados a partir de uma outra lente: os desafios dos clientes. Seguindo essa linha, os mercados irão obedecer ao passo-a-passo que contempla a decisão de compra dos clientes. E eu, como cliente, posso decidir que, dados os prejuízos ao meio ambiente, os custos de combustível, seguro, multas e estacionamento, não vale a pena possuir um carro. E para o meu desafio de me deslocar de um ponto a outro na mesma cidade, posso optar por uma série de outras alternativas: metrô, ônibus, táxi, bicicleta e aplicativos diversos. Assim, toda empresa compete com as alternativas às suas soluções.
As vantagens de olharmos para o mercado sob essa ótica são muitas. Primeiro, os desafios serão estáveis ao longo do tempo. Por isso, eles independem de novas soluções ou tecnologias. Por isso, é muito mais seguro basear a sua estratégia em desafios e aplicar essa mesma lógica à atuação da sua concorrência. Depois, cada passo que antecede e sucede a superação desse desafio pode representar uma nova oportunidade para entrega de valor.
Não temos concorrentes (será?)
Já perdi a conta do número de vezes em que ouvi essa frase. E em pouquíssimas delas a afirmação tinha algum fundo de verdade. O problema é que, quando somos apaixonados por algo, temos dificuldade em fazer comparações (quem tem filhos pequenos, me diga: existe alguma criança mais bonita ou inteligente?). Mas são raros os casos em que uma empresa não tem concorrentes. Principalmente se enxergarmos o mercado sob a ótica das necessidades do cliente.
Muitos mercados que hoje estão em alta seriam, sob a ótica dos desafios do cliente, novas opções dentro de mercados tradicionais. Alguns exemplos:
Ensino online: mercado da aprendizagem, onde o consumidor quer aprender sobre novos assuntos. Compete com livros de não ficção, cursos tradicionais e professores autônomos.
Streaming: mercado do entretenimento, onde o consumidor quer imergir em novas histórias. Compete com podcasts, cinema, teatro e também com livros.
Aplicativos de motoristas: mercado de transporte particular, onde o consumidor quer se deslocar de um ponto a outro na mesma cidade com algum conforto. Como vimos, compete com o automóvel particular, com o transporte executivo, com o ônibus, com o táxi, com a bicicleta e com o metrô.
Cabe ressaltar que desafios mais específicos irão levar em conta o contexto e segmentar ainda mais um mercado mais amplo. Quando digo com algum conforto, no caso do mercado de transporte particular, estou atendendo a um nicho específico de pessoas que, em determinadas situações, não irão abrir mão deste conforto.
Até aqui, você já deve ter percebido a importância de conhecer as opções do seu público à sua solução. Agora, você vai entender como fazer disso uma vantagem estratégica.
Redefinindo mercados
Você precisa conhecer a concorrência para ser uma opção melhor do que eles. E só quando você define claramente qual é o desafio do cliente que você irá atender é que você poderá redefinir uma categoria que destaque a sua marca da concorrência.
E é aí que entra um componente essencial de qualquer produto de comunicação: a linguagem.
Ao estabelecer uma nova linguagem para se referir a um segmento dentro de uma necessidade existente, você tem a chance de criar um novo nicho. Neste belo artigo, Eddie Yoon, Nicolas Cole e Christopher Lochhead falam sobre a importância da linguagem na criação de categorias:
“Quando Henry Ford chamou o primeiro veículo de “carruagem sem cavalo”, ele estava usando a linguagem para conseguir fazer o cliente PARAR, ouvir e compreender imediatamente o DE-PARA: da forma como o mundo era para a nova e diferente forma que queremos que ele seja.”
A expressão usada por Ford nos dá a clara ideia de que alguma coisa substituíra o cavalo (naturalmente, o motor a explosão). Mas que alguns elementos permaneciam, nos dando a familiaridade necessária para fazermos a transição (rodas, poltronas, portas e janelas).
Interessante notarmos que, na mesma época do surgimento da linha de produção em série de Ford que viabilizou o consumo em massa do automóvel, já havia bicicletas. Mas a referência da carruagem fazia muito mais sentido se considerarmos as necessidades específicas do público: se deslocar de um ponto a outro na mesma cidade com algum conforto.
Da mesma forma, buscamos conforto ao pensar o futuro. E olhar para a concorrência traz uma série de temores e incômodos que se traduzem em desconforto. Mas será preciso superar essa tendência se quisermos, de fato, criar algo durável e significativo.